sábado, 9 de fevereiro de 2013

A REALIDADE NAS TELAS




Filme dinamarquês conta história de precursor dos valores da Revolução Francesa

Indicado ao Oscar 2013 e premiado no Festival de Berlim, o drama histórico dinamarquês ‘O Amante da Rainha’ conta a história de Struensee, o homem que introduziu a liberdade de imprensa, aboliu a tortura e organizou a proteção aos mais pobres em seu país décadas antes da revolução francesa. O artigo é de Ladislau Dowbor

Um belo filme, O Amante da Rainha. No original dinamarquês, En Kongelig Affaere, soa um pouco mais sério. Em inglês traduziram como A Royal Affair, fiel ao original, mantendo o cunho político, mas jogando com o duplo sentido, de um caso político e de um “caso” de cama. Na nossa versão, sempre puxando para “aquele” lado, fomos mais explícitos: um dos principais transformadores políticos europeus, Struensee, que introduziu a liberdade de imprensa, aboliu a tortura e organizou a proteção aos mais pobres, isto décadas antes da revolução francesa, virou simplesmente “o amante da rainha”. Desde o papa Alexandre VI na devassa Roma, até o caso da cunhada no Brasil, passando pelo diretor do FMI que despencou da sua posição de presidenciável da França, o que importa realmente é a política vista pelo buraco da fechadura. Até na nossa mais alta corte de justiça, as pessoas devem lembrar, os julgamentos importantes para o país foram paralisados durante quase um ano pela discussão sobre se os membros femininos poderiam ou não se apresentar com calças, em vez do tradicional vestido. Muito importante. Perturbaria a serenidade dos supremos.

Temos aqui sólidas tradições. O governo do país mais importante do mundo se viu paralisado durante anos com a discussão, de alto teor ético, sobre se o presidente teve ou não um caso com a secretária. Um terço do PIB mundial está em paraísos fiscais, dinheiro de evasão fiscal, venda de armas, lucro de drogas, corrupção política e privada. Não é essencial. No planeta onde morrem anualmente 11 milhões de crianças por falta de assistência – e 11 milhões não é uma cifra, significa 11 milhões de vezes sofrimentos da criança e dos pais ao ver uma criança morrendo – o mais importante, naturalmente, era se o Presidente se deixou ou não seduzir pela secretária. O governo, o senado, a grande mídia, discutindo durante anos um assunto de alta relevância: comeu? Comeu mas não gozou, como foi amplamente discutido? Alta política.

Struensee, pela posição de influência junto ao rei da Dinamarca, introduziu durante um ano (essencialmente 1771) as reformas seguintes, entre outras: abolição da tortura, abolição do trabalho servil, abolição da censura de imprensa, abolição dos privilégios da nobreza, abolição da escravidão nas colônias dinamarquesas, criminalização das propinas, criação de estoques governamentais de grãos para cobrir anos de penúria e reduzir especulação com preços, reforma universitária, reforma da saúde pública, reforma agrária. Neste ano, foram 1069 decretos e leis, que constituem a raiz da modernidade democrática de hoje. O amante da rainha…

Os privilegiados não perdoam. Organizaram um golpe. Mas pessoas éticas organizam golpes com forte fachada legal e ética. Prenderam o Struensee, e em seguida o julgaram (o julgamento não aparece no filme), e o condenaram à morte com todas as formalidades. Em seguida formaram um gabinete que devolveu aos nobres e à igreja os velhos privilégios, inclusive a prática da tortura. Felizmente, o herdeiro Frederick, atingindo a maioridade, e com a autoridade de soberano, reconstituiria mais tarde o essencial da herança de Struensee, gerando boa parte da democracia e liberdade que hoje conhecemos nesta região da Europa. Mataram o pai, mas a semente brotou.

Voltando ao assunto mais importante, o da cama. Para o golpe, foi feita intensa mobilização popular, com imensa campanha que aproveitou a liberdade de imprensa introduzida pelo próprio Struensee. Como não dava para atacar a sua política democrática, muito popular, fizeram intensa campanha, que não deixou nada a desejar ao que seria a campanha da direita contra Clinton, indo ao ponto essencial: ele comeu a rainha. Comeu a Nossa rainha! Um crime abominável. Deixou-se dominar por tendências criminosas, de lesa-majestade, por não resistir ao charme da rainha então de 20 anos. Para punir o amor, estes mestres da ética mostraram a sua dignidade.

Separaram os filhos da rainha, que foi exilada, deixando-a morrer solitária aos 23 anos de idade. Quanto a Struensee, foi decapitado, mas antes torturado, e também, coisa que não aparece por razões óbvias no filme, teve antes as mãos decepadas, e depois foi publicamente destripado. Em nome da ética. A parte da população que aderiu ao show sanguinário uivava de excitação. O amor infame estava punido. A restituição dos privilégios da nobreza foi tratada em gabinete, de maneira mais discreta. A chave da política, da política sem-vergonha, está no buraco da fechadura. Como diz a minha amiga Monika, o buraco da fechadura é o novo “circo para o povo”, enquanto nos bastidores a Política segue o seu rumo. 

* Mais informações em http://dowbor.org/

‘Os Miseráveis’: o charme e o veneno dos espetáculos ‘made in Broadway’

Em cartaz nos cinemas, o musical ‘Os Miseráveis’ sugere aos espectadores que os miseráveis de verdade são o que menos importam. Autor do romance original, Victor Hugo, grande poeta e romancista, teve o mérito de sair de sua torre de marfim e se comover com a miséria europeia do nascente capitalismo industrial. Mas sua perspectiva não se sustenta mais. O artigo é de Enio Squeff


Com Victor Hugo, escritor francês (1802-1885), dá-se o mesmo – mas tudo com um toque de sentimentalismo de que "Os Miseráveis", musical da Broadway transformado em filme por Tom Hooper a partir da partitura composta por Claude-Michel Schönberg, é o exemplo mais recente a ser projetado nas telas dos cinemas brasileiros.

O romance de Victor Hugo se presta à feição aos bons negócios musicais da Broadway. Jean Valjean, personagem da obra, é condenado às galés, em Paris, por ter roubado um pão, que mataria a fome da família. Argumento mais comovente, impossível. Ocorre que Jean Valjean, além de miserável, e fortíssimo, no fundo, é um santo. Na contramão de seu perseguidor implacável, o inspetor Javer, Jean Valjean acumula atos de generosidade incalculáveis, no que é secundado por um bom número de personagens que o rodeiam - muitos deles os tais miseráveis do título. 

Ao fato se agrega um revolucionarismo latente na França da época, recém saída da Queda da Bastilha: pronto, está feito o roteiro que, desde 1985, vem rendendo rios de dinheiros a seus produtores e, especialmente, a seu compositor, o francês Claude-Michel Schönberg. Ao que parece, a crítica não gostou – mas o público vem lotando não só o espetáculo da Broadway, numa encenação que não deve nada a outras montagens algures, mas principalmente as salas de cinema. Difícil não dizer que o sentimentalismo escancarado – que culmina, no filme, com a cena do personagem a ser levado para os céus, não seja uma fórmula válida para granjear bons dividendos.

Em seu romance, Victor Hugo parece mais convincente, como se pode imaginar. Além do valor literário, "Os Miseráveis" tem um toque épico, que se sobrepõe ao enredo folhetinesco. No filme, pelo contrário, tudo parece se encaixar na superprodução teatral. Aliás, mesmo nas cenas de rua, tudo conduz aos cenários da peça. 

Com isso, resta aos espectadores a câmera que se movimenta com a proficiência da indústria americana, mas sobretudo a música de Claude-Michel Schönberg. Que, apesar de sobrenome do criador do dodecafonismo (Arnold Schönberg), parece bem longe da originalidade, mas principalmente da genialidade de seu homônimo austríaco (ele é filho de judeus húngaros). 

Talvez o grande problema seja mesmo o lado insuportavelmente edulcorado da adaptação do livro de Victor Hugo. Na cena do levante frustrado dos estudantes – o momento para ser épico, ainda que fora do lugar, que aparece como fio condutor do drama individual de Jean Valjean, afora a clara montagem do cenário – a cena de rua fica restrita a uma construção teatral –, a música, a todo o momento, roça a "Internacional Comunista". 

Parece uma espécie de reprise dos levantes heróicos de alguns poucos estudantes – nada diferente, enfim, da realidade que nos é tão próxima, mas que aqui e algures, nunca se fez como qualquer namorico com as bobagens sentimentalóides tão ao gosto da indústria cultural, particularmente a americana.

É um pouco frustrante, na verdade, que se compare "Os Miseráveis" na sua versão teatral e cinematográfica com outros musicais americanos, do qual o que mais vem à mente é "West Side Story", com música de Leonard Bernstein e coreografia de Jerome Robbins. Está certo: Bernstein, regente maiúsculo e compositor mais que competente, foi um dos maiores músicos norte-americanos de todos os tempos. E Jerome Robbins foi um coreógrafo que prescindia das luzes de Hollywood para ser grande. 

Não é o caso nem do compositor de "Os Miseráveis, muito menos do seu diretor. A comparação, portanto, já não se sustenta na sua proposição. Mas, como filme, "Os Miseráveis" parece soar estranho aos brasileiros, para os quais o título sugere uma realidade que não tem nada de reminiscente; e que se apresenta como um desafio a ser superado. Sob este aspecto, o filme empresta um charme à questão, como se ela só se compusesse num cenário glorioso de um passado superado - até mesmo na França. O que não é verdade nem como ficção.

Com tudo isso, ao fim do filme "Os Miseráveis", o que fica para os espectadores é que os miseráveis de verdade são o que menos importam. Enquanto Jean Valjean vai para o paraíso, com um coro angelical no fundo e que celebra a sua vida de bondade infinda, os homens, mulheres e crianças que se projetam na história vão continuar na sua condição nefanda, independentemente, de sua maldade ou generosidade igualmente extremas. 

Para um país que ouve diariamente o bordão do governo de que "um país rico é um país sem miséria", os miseráveis são mais um incômodo do que um motivo para meditação. Talvez o sucesso da fita se explique por aí: é bem melhor inventar miseráveis canoros, bonitos e generosos do que olhá-los à saída do cinema, como se não fosse tudo feio, maldoso e ignobilmente sujo.

Victor Hugo foi um grande poeta e romancista. Como seu colega e contemporâneo inglês, Charles Dickens, teve o mérito de sair de sua torre de marfim e de se comover com a miséria reinante numa Europa tomada pelo capitalismo selvagem dos primeiros tempos da industrialização. Sua perspectiva, porém, não se sustenta passado mais de um século de um capitalismo que parece querer voltar a suas origens sob o epíteto de "neo".

A não ser que se aceitem mentiras ou más interpretações como amortecimento para a "mauvaise consciense" de que nós, brasileiros, deveríamos estar mais que vacinados a essas alturas da nossa história. Mas há a indústria do espetáculo de que ainda não aprendemos o antídoto. A mediocridade do que se ouve nos rádios e TV é ilustração disso. Mas é também a explicação para que tanta gente se movimente para ver o filme. E para que se despendam tantas reflexões tão inúteis quanto óbvias.

*Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

Django Livre, Django Siegfried, Django Obama: metamorfoses liberais de Tarantino

Django, o extraordinário protagonista do filme de Quentin Tarantino, apenas consegue explodir a escravidão de suas próprias correntes, enquanto a multidão restante, sobre a qual Hollywood não projeta os holofotes, permanece desempregada em um país racista e liberal, cujas contradições ‘Django Livre’ soube tão bem criticar e reproduzir. O artigo é de Flávio Ricardo Vassoler

O Dr. King Schultz (Christoph Waltz) e Django (Jamie Foxx) cavalgam rumo à casa grande de uma fazenda do estado do Tennessee poucos anos antes do início da Guerra de Secessão (1861-65). O Dr. Schultz é um dentista alemão que há alguns anos se radicara nos Estados Unidos e acabara se tornando um caçador de recompensas. Django é um ex-escravo que aceitara temporariamente a parceria com o Dr. Schultz em troca da alforria e de sua ajuda para encontrar a esposa, a escrava Brunhilde (Kerry Washington). Após uma tentativa de fuga mal-sucedida do casal, o sádico proprietário da fazenda em que trabalhavam decide vender Django e Brunhilde separadamente. 

A proximidade da dupla inusitada de cavaleiros põe a casa grande em polvorosa. Os escravos não acreditam quando veem um negro andando a cavalo ao lado de um provável senhor branco. O fazendeiro, por sua vez, toma a altivez de Django como uma afronta à sua condição de latifundiário escravocrata. É nesse preciso contexto que o mais recente filme de Quentin Tarantino, Django Livre, começa a apresentar as potencialidades e as contradições de sua crítica social. 

O Dr. Schultz propõe ao fazendeiro a compra de uma de suas escravas – Brunhilde poderia ser uma delas. Mas, diante da presença de Django, o escravocrata se nega a estabelecer qualquer tipo de negociação. Vemos, então, que a assimetria fundamental da sociedade escravista impede o estabelecimento de uma relação comercial que envolva um ex-escravo – conforme o Dr. Schultz faz questão de frisar – e um fazendeiro. Ainda que Django possua o montante de dinheiro que o coloque em condições de se tornar um comprador, o desnível fundamental assentado sobre o dorso da escravidão impede que o proprietário sulista firme um contrato com um negro. A moderna instituição do contrato, vale frisar, parte do pressuposto de que há igualdade jurídica entre as partes. A prática racista do fazendeiro atesta para os devidos fins que a condição de ex-escravo não transforma Django em sujeito de direito dentro de sua propriedade. Nem mesmo a esfera do mercado, que supostamente abstrai a origem de seus agentes em função da primazia do dinheiro, consegue demover o proprietário de escravos de sua decisão final. 

Mas eis que Tarantino faz intervir o Dr. Schultz: branco e doutor, honraria fundamental para uma sociedade profundamente hierarquizada e ávida por distinções. Longe de ser um ex-escravo, o ex-dentista sabe insuflar a vaidade do proprietário para jogar com sua condição dupla de fazendeiro escravocrata e homem de negócios: 

− Se o senhor é de fato o homem de negócios de que ouvi falar, saiba que vou lhe dar 5.000 razões para que ouça a proposta que tenho a lhe fazer! 

A priori, o negro altivo escandaliza a suscetibilidade racista do fazendeiro. No entanto, o montante irrecusável consegue embranquecer o ouro negro aos olhos contábeis do negociante. Assim, a esfera do mercado pôde apresentar um caráter democrático e potencialmente emancipatório que as relações assimétricas da sociedade escravista só faziam rechaçar. Estamos diante dos primórdios do liberalismo econômico e político que tenta estabelecer a livre iniciativa e a livre concorrência diante da sociedade tradicional calcada na naturalização das distinções étnicas. Nesse sentido, Tarantino desponta como um crítico liberal-progressista que vê a esfera do mercado como uma contrapartida democrática em relação ao racismo endêmico da sociedade norte-americana. Se considerarmos que, mesmo nos dias de hoje, ainda há sulistas encarniçados – prováveis tataranetos do fazendeiro do Tennessee – que consideram que não houve na verdade uma Guerra de Secessão a se pautar pelo fim da escravidão, mas antes uma Northern Agression, isto é, uma agressão nortista completamente injustificada, compreenderemos que Tarantino traça a genealogia da tensão entre escravismo e liberalismo para a consolidação dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. 

Na verdade, a visita do caçador de recompensas Dr. Schultz à fazenda visava capturar, vivos ou mortos, três irmãos feitores que se encontravam foragidos da justiça. Django torna-se o carrasco de seus antigos algozes e mata dois irmãos com uma dose de violência ressentida que Tarantino bem sabe explorar em suas obras. O terceiro foge a galope pelos campos de algodão. Nada que a mira certeira do Dr. Schultz não consiga enquadrar – e exterminar. Em uma tomada profundamente simbólica, o feitor despenca do cavalo e seu sangue tinge o algodão cultivado sobre a terra arada com as correntes da escravidão. Agora a dupla de caçadores já pode receber sua recompensa legítima. E assim vemos o outro lado da moeda liberal em terras norte-americanas: enquanto a Europa propugnava por um liberalismo universal que rompesse com as desigualdades aristocráticas por meio da ética do trabalho (assalariado) e da igualdade perante a lei, o liberal norte-americano encarnado na personagem europeia do Dr. Schultz amealha o pão nosso de cada dia fazendo valer a justiça como um justiceiro. Quando as ideias encontram-se fora de lugar, o lugar não deixa de dar nova coloração prática às ideias, de modo a desvelar as contradições da ideologia liberal no seio de uma sociedade profundamente autoritária.

Como Brunhilde não está na senzala do Tennessee, Django e o Dr. Schultz decidem explorar as masmorras do Velho Sul até chegarem ao estado ainda mais reacionário do Mississippi. Como costuma fazer em suas obras, Tarantino estabelece diálogos entre diferentes gêneros cinematográficos, de modo a parodiar o gênero inicial em uma nova montagem que subverta seus princípios de constituição. Assim, o gênero racista do Western, o Far West – por aqui conhecido como faroeste –, que dramatiza a marcha do holocausto indígena Velho Oeste afora pelos gatilhos ligeiros dos cowboys brancos que, de lambujem, ainda pilham e amealham boa parte do território mexicano, é transformado em uma marcha de salvação da amada Brunhilde pelo destemido Django Siegfried. Quando o Dr. Schultz soube que a esposa de Django chamava-se Brunhilde, logo quis descobrir a razão do nome germânico. Então Django lhe contou que, quando criança, Brunhilde tivera uma patroa alemã que lhe havia ensinado o idioma para ter alguém com quem conversar na língua materna. O Dr. Schultz se anima e narra a Django a lenda de Siegfried, o herói que salva a amada Brunhilde do topo de uma montanha circundada por um anel de fogo, não sem antes matar um dragão que fazia as vezes de sentinela. À contradição do liberal que faz justiça com as próprias mãos, soma-se agora a releitura da lenda alemã que reencarna Siegfried no corpo repleto de cicatrizes de um ex-escravo que buscará a amada em meio ao Mississippi em chamas. 

Mas logo Django Siegfried sofreria uma nova mutação. A dupla de caçadores de recompensas descobre que Brunhilde está em Candyland, fazenda de algodão que, Django conta ao Dr. Schultz, fazia tremer todos os escravos. Conforme a aula prática de microeconomia no Tennessee já lhes ensinara, não seria nada prudente abordar o proprietário de Candyland apenas para comprar a liberdade de Brunhilde. Seria necessário um empreendimento de maior vulto. É assim que o empreendedorismo liberal do Dr. Schultz transforma Django Siegfried em um mercador de escravos, um “negro sabido” especialista em Mandingos, escravos viris com cujas lutas Monsieur Candie (Leonardo DiCaprio), o francófilo proprietário de Candyland, gasta muito dinheiro. 

− Com esse disfarce, conseguiremos introduzi-lo no covil racista de Candyland, Django, pois faremos uma proposta tão ridiculamente exorbitante por um dos lutadores que Monsieur Candie não poderá recusar. Então, quando os feitores comprarem a nossa ideia, faremos uma outra proposta pela sua amada Brunhilde. 

A tétrica transformação de um negro liberto em mercador de escravos – “o pior na escala da escravidão”, segundo a máxima amargurada de Django –, mais do que apresentar um mote para a constituição da narrativa, desvela uma condição estrutural para a aceitação de Django no círculo mais íntimo da casa grande de Candyland. Tarantino encontra uma das únicas veredas disponíveis para transformar o altamente improvável em socialmente possível. 

Antes de apresentar o mais novo comprador liberal de Mandingos e seu mercador de escravos a Monsieur Candie, o advogado lacaio avisa ao poliglota Dr. Schultz para não falar em francês com o patrão francófilo, “já que ele pode se sentir embaraçado por não falar a língua do país que tanto aprecia”. (Machado de Assis se divertiria em encontrar as mesmas contradições que animaram a elite brasileira encarnada em Brás Cubas em um liberal norte-americano influenciado pelo verniz iluminista que relegava às sombras da senzala os corpos negros.) As tratativas se desdobram não sem tensões limítrofes por conta da presença de um negro liberto na alcova de Candyland. Mas, ao fim e ao cabo, Django e o Dr. Schultz são convidados a avaliar a qualidade do material humano que pretendem comprar. 

Entra na história, então, o antípoda de Django: Stephen (Samuel L. Jackson), escravo da mais alta confiança de Monsieur Candie, cuja auréola de cabelos brancos que lhe circunda a cabeça calva mimetiza à perfeição o algodão escravista de Candyland que o submisso da casa grande não terá que colher. A antipatia que Stephen sente por Django Livre é imediata. A altivez de Django lhe devolve contra a pele toda a vida que Stephen tentou embranquecer ao se tornar uma caricatura racista dos nhonhôs. 

Para comemorar o bom curso das negociações – 12.000 dólares fazem Django ser aceito à mesa de jacarandá escravo –, um jantar farto é servido. Os olhares oniscientes e onipresentes de Stephen entreveem um elo subliminar entre a mucama Brunhilde e o atrevido mercador de Mandingos. Na noite anterior, Brunhilde fora chamada ao quarto do Dr. Schultz, “pois sinto muita falta do meu idioma materno”. Siegfried e Brunhilde voltaram a se encontrar, mas ainda era preciso matar o dragão e atear o círculo de fogo ao redor de Candyland. 

Eis que a irmã viúva de Monsieur Candie discorda do comentário lascivo do irmão, segundo o qual o Dr. Schultz havia ficado “preso como piche no amor da negrinha”. “Não, não, meu irmão, ela apenas parece ter olhos para Django”. O desenrolar da trama faz Stephen convocar Monsieur Candie, aos sussurros, para uma reunião de emergência na biblioteca, justamente no momento em que as tratativas sobre a possível compra de Brunhilde tinham início. Alertado por Stephen sobre a farsa da compra do Mandingo que só seria efetuada cinco dias mais tarde – “farsa que na verdade esconde o resgate da esposa, Monsieur Candie” –, o nhonhô francófilo toma as rédeas da situação e desmascara e desarma os impostores. Brunhilde tem a cabeça posta sob o golpe iminente de um martelo, “e eu vou esmagá-la neste instante se vocês não me pagarem os 12.000 dólares que eu não ia receber pelo Mandingo!”

O dinheiro é disponibilizado sem mais pelo Dr. Schultz, e então tem início a última sessão contratual do filme. Sob a mira das garruchas dos capangas de Monsieur Candie, a alforria de Brunhilde é assinada com a presteza de quem passa a ironizar ao máximo aqueles que há pouco o tentaram ludibriar. O contrato estaria selado, a transação estaria efetuada, se as teorias racistas expostas por Monsieur Candie após a descoberta da trapaça não trouxessem uma última e inesperada cláusula contratual ao Dr. Schultz. 

Quando o martelo ainda pairava sobre a cabeça de Brunhilde, Monsieur Candie e seu iluminismo escravocrata esboçaram uma breve explanação sobre a pseudociência da Frenologia, segundo a qual marcas fisiológicas no crânio de negros demonstrariam a propensão à submissão. “Do contrário, como entender a disposição do falecido escravo Ben, cujo crânio repousa em minhas mãos, em fazer a barba do meu pai três vezes por semana com uma navalha afiada durante mais de cinquenta anos sem jamais esboçar sequer a menor intenção de degolá-lo?” Mas, ainda segundo Monsieur Candie, “há negros que, com o tempo, conseguirão superar a limitação fisiológica. Um a cada dez mil, negros como Django”. Se pensarmos que, desde 2008, os Estados Unidos vêm sendo governados pelo primeiro presidente negro de sua história, a barbaridade racista de Monsieur Candie ganha uma dupla conotação: por um lado, a pseudoteoria do nhonhô vê-se confirmada não em sua perspectiva fisiológica, mas na percepção crítica de boa parte dos eleitores desempregados dos Estados Unidos, em sua maioria negros e latinos que herdaram o espólio de Candyland, que acabaram por levar Barack Obama à Casa Branca; por outro, o filme de Tarantino ressoa o darwinismo social subjacente às falácias de Monsieur Candie, pois Django Obama, um entre dez mil, merece protagonizar um filme de Hollywood, ao passo que os 9.999 escravos restantes reiteram as pseudoestatísticas de Monsieur Candie como os figurantes sem voz. 

Mas voltemos à última e inesperada cláusula contratual imposta por Monsieur Candie ao Dr. Schultz: 

− Saiba, doutor, que nenhum contrato é selado por aqui sem um bom e velho aperto de mãos. Sendo assim, seja um bom perdedor e venha apertar a mão daquele que o superou. 

A vaidade do Dr. Schultz não parece afetada pelas gozações de Monsieur Candie. Na verdade, o alemão começa a sentir vertigens ao se lembrar de que apertará a mão de um crápula que há poucas horas havia arremessado seu ex-lutador aos cães apenas porque o Mandingo não queria perfazer o total de cinco lutas pelas quais o nhonhô havia pagado; de que apertará a mão daquele que há pouco ia estraçalhar a cabeça de Brunhilde se 12.000 dólares não fossem prontamente depositados sobre sua mesa de jacarandá negro. 

Mais uma vez, a cordialidade e o personalismo entravam as relações impessoais de mercado. Agora, o cumprimento cotidiano que demonstra sinal de respeito ao interlocutor é transfigurado em sinal de humilhação. Ao perceber que a vida de Brunhilde dependia daquele último suplício, o Dr. Schultz se aproxima de Monsieur Candie e, imediatamente antes de estender-lhe a mão, saca a micropistola que traz junto ao punho e dispara um tiro certeiro que, antes de perfurar o coração de Monsieur Candie, transpassa a flor de algodão que o nhonhô leva na lapela, síntese efetiva do navio negreiro atracado em Candyland. 

A sequência apresenta um longo tiroteio que transforma Django no gatilho mais rápido do Velho Sul. Um a um, os cadáveres dos capangas de Candyland vão sendo empilhados, até que Django Obama, um entre dez mil, depara-se com o servil Stephen. O velho escravo coxo recebe dois tiros, um em cada joelho, para não poder fugir enquanto Django queima o pavio da dinamite que levará a casa grande pelos ares. Antes de correr para longe da explosão, Django sentencia a Stephen: 

− Você é o que de pior a escravidão produziu! Por isso, não deve jamais sair de Candyland...

A dinamite Django Siegfried reitera Mississippi em chamas. Candyland, Monsieur Candie, Stephen e a senzala foram pulverizados pelo anel de fogo. Mas a pseudoteoria do iluminista escravocrata ressoa pelas metamorfoses liberais subjacentes à crítica social de Quentin Tarantino, já que o extraordinário protagonista Django Obama, um entre dez mil, apenas explode a escravidão de suas próprias correntes, enquanto a multidão restante sobre a qual Hollywood não projeta os holofotes permanece desempregada em um país racista e liberal, cujas contradições Django Livre soube tão bem criticar e reproduzir. 

*Flávio Ricardo Vassoler é mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP e escritor. Seu primeiro livro, O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos), será publicado em abril. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.

Com Gael Garcia Bernal, filme conta como um publicitário superou o General Pinochet

Indicado ao Oscar de filme estrangeiro, 'No', do diretor Pablo Larrain e estrelado por Gael Garcia Bernal, narra a história do plebiscito de 1988 que pôs fim à era Pinochet. Na época, pela primeira vez a oposição conseguiu quinze minutos de propaganda eleitoral, em que teve a tarefa de convencer os chilenos de que chegara a hora da mudança. 


Mas eu não tenho certeza se as pessoas sabem como ele foi derrotado. O que ocorreu foi uma fascinante combinação de mídia, propaganda e capitalismo”, O último filme de Larrain, “No”, retrata a intrigante estória da propaganda por trás do referendo e das estratégias da derrocada do ditador chileno.

No final dos anos 80, o líder chileno Pinochet queria suavizar sua imagem e passou a trocar sua indumentária militar por ternos elegantes. Sob a pressão dos EUA, seu aliado no golpe de 73, que derrubou o então presidente, democraticamente eleito, Salvador Allende, Pinochet criou uma eleição. E o que foi mais então significativo: pela primeira vez, na corrida para a presidência, a oposição conseguiu quinze minutos de propaganda eleitoral. A tarefa deles era convencer os chilenos que era chegada a hora da mudança, e que podiam ir, sem medo, às urnas.

O filme, indicado para o Oscar na categoria Melhor em Língua Estrangeira, tem Gael Garcia Bernal no papel de Rene Saavedra, o publicitário de voz suave que protagoniza a campanha chamada “No”. É uma interpretação forte e convincente do ator mexicano que foi lançado à fama graças a filmes aclamados como clássicos e de arte, como Amores Brutos e Babel, além de um bem vindo retorno ao cinema latino-americano depois de algumas escolhas um tanto questionáveis (o quanto menos lembrarmos das comédias românticas, vide Pronta para Amar , de 2011, ao lado de Kate Hudson, melhor).

O personagem de Bernal teve que criar um anúncio e uma campanha que acertassem no tom. Depois de discutir com políticos sobre qual deles ocuparia o lugar oposto ao dos horrores de uma ditadura, sua visão ficou mais clara. Passa, então, a focar em uma postura totalmente positiva, abraçando a ideia do mercado livre e da geração Coca-cola que ironicamente Pinochet ajudou a crescer, mas a desfavor do próprio ditador. A campanha criou, então, um logo multicolorido, enquanto que as propagandas da televisão usavam imagens claras, solares, de sujeitos sorridentes e loiros, acompanhada do slogan “A felicidade está chegando”. A campanha do “Sí” estaciona. 

O filme usa uma boa dose de licença poética. Muitos dos personagens são amálgamas de vários envolvidos com os fatos da época, e o próprio Saavendra é na verdade uma mistura do que foram José Manuel Salcedo e Eugenio Garcia, com algo da vida particular e familiar mostrado na medida certa (a mulher Veronica é interpretada pela mulher de Larrain, Antonia Zegers). Os dois, Salcedo e Garcia, também estão aparecem no filme, mas de forma invertida ao que fizeram, como cúmplices da campanha “Sí”.

A maior licença tomada no filme diz respeito ao papel de Lucho Guzman, interpretado por Alfredo Castro, o chefe de propaganda de Saavendra, que também é um dos mais próximos do círculo do protagonista. Na verdade, os dois nunca trabalharam juntos mas a solução do filme proporciona uma nova dimensão dramática; Guzman, estrela de outros dois filmes de Larrain, é um vilão maravilhoso.

Larrain insiste que "No" é fiel ao cerne dos fatos e a como eles ocorreram. A câmara utilizada na filmagem confere ao filme uma dimensão granulada, além do artifício esperto de entrecortar o drama com filmagens de noticiários. Ele também traz imagens originais do Primeiro Presidente do Chile depois de Pinochet, Patricio Aylwin, numa re-encenação da festa de vitórida da campanha “No”, também entremeada por genuínos trechos de noticiários. 

“No” é o último filme de uma trilogia baseada na ditadura, assunto que Larrain passou a conhecer bem. Ele costuma dizer que queria responder a pergunta sobre como a sociedade chilena poderia se machucar tanto.

Os primeiros dois filmes da trilogia, Tony Manero e Post Mortem, os dois estrelados por Castro, usaram a ditadura como pano de fundo, para explorar as complexidades dos seus personagens principais. No primeiro deles, Castro interpreta Raul Peralta, um obcecado por John Travolta, e também serial killer; no outro ele é um agente funerário reprimido, assistindo aos corpos se empilharem. Mas em “No” finalmente a ditadura tem o papel principal.

“Talvez os dois primeiros filmes fossem sobre pessoas derrotadas”, diz Larrain. Mas “No” é sobre o triunfo, e traz uma qualidade épica. Como diretor, você nem sempre consegue contar uma história como essa”

'Argo' em cartaz não é coincidência

Ao olharmos para a atual conjuntura de incertezas, o filme 'Argo', de Ben Affleck, torna-se um importante componente na campanha de desinformação sobre as instabilidades no Oriente Médio. Trata-se de uma produção recheada de estereótipos que difamam o Oriente e os orientais (no caso, os iranianos), e reforçam o velho maniqueísmo hollywoodiano, baseado na “luta do bem contra o mal”.


Em filme sobre Bin Laden, Hollywood ajuda a 'normalizar' a tortura

‘A hora mais escura’, com cinco indicações ao Oscar e que estreia em 15 de fevereiro no Brasil, trata dos bastidores da operação dos EUA que matou Osama Bin Laden em 2011. Diretora Kathryn Bigelow se defende, mas cenas de tortura “normalizam” a prática de modo até mais intenso do que fazia a série de tevê “24 Horas” – um sinal do vácuo moral do qual nos aproximamos. A análise é Slavoj Zizek


Aqui está como, em uma carta ao jornal LA Times , a cineasta Kathryn Bigelow justificou a representação, no filme "A Hora Mais Escura" (o título em inglês é “Zero Dark Thirty”), de métodos de tortura usados pelos agentes do governo norte-americano para capturar e matar Osama Bin Laden:

"Aqueles de nós que trabalham com arte sabem que representação não é aprovação, elogio. Se o fosse, nenhum artista estaria apto a pintar atos desumanos, nenhum autor poderia escrever sobre eles, e nenhum diretor de cinema poderia se aprofundar em assuntos espinhosos de nosso tempo", escreveu ela ao jornal.

Sério? Ninguém precisa ser um moralista, ou ingênuo sobre as urgências da luta contra o ataques terroristas, para pensar que torturar um ser humano é, em si mesmo, algo tão destruidor que representá-lo de maneira neutra – isto é, neutralizar este caráter destruidor – é por si uma maneira de apoiá-lo.

Imagine um documentário que nos apresente o Holocausto de um jeito desinteressado e tranquilo, como uma enorme operação logística-industrial, focando nos problemas técnicos envolvidos (transporte, descarte de corpos, prevenção do pânico entre os prisioneiros que seriam postos nas salas de gás). Tal filme traria também consigo uma fascinação profundamente imoral com o assunto, ou estaria baseado numa neutralidade obscena em seu modo para gerar consternação e horror nos espectadores. Onde Bigelow se encaixa aqui?

Sem sombra de dúvida, ela está aliada a uma normalização da tortura. Quando Maya, a heroína do filme, presencia pela primeira vez uma simulação de afogamento, fica um pouco chocada, mas rapidamente aprende as artimanhas; mais adiante no filme ela chantageia friamente um prisioneiro árabe , "se você não cooperar, nós lhe mandaremos para Israel". Sua perseguição fanática atrás de Bin Laden ajuda a neutralizar escrúpulos morais comuns. 

Ainda mais ameaçador é seu parceiro, um agente da CIA jovem e barbado que domina perfeitamente a arte de passar desembaraçosamente da tortura para a gentileza uma vez que a vítima está completamente desamparada (acendendo seu cigarro e lhe contando piadas). 

Existe algo extremamente perturbador como, mais para frente, o este agente muda de um torturador vestindo jeans para um bem-vestido burocrata de Washington. Isto é normalização mais pura e eficiente – existe um pequeno mal-estar, mais pela sensação da tortura que pela ética, mas o trabalho tem de ser feito. 

A consciência de que esta sensação ruim sofrida pelo torturador é o principal custo humano da tortura deixa claro de que não se trata de uma propaganda conservadora barata: a complexidade psicológica é representada para que liberais possam se divertir com o filme sem se sentirem culpados. É por isso que “A Hora Mais Escura” é bem pior que “24 Horas” (série de TV), em que Jack Bauer, pelo menos, rompe com o serviço secreto no último episódio.

O debate se simulação de afogamento é o ou não tortura deve ser vista como um explícito irracionalismo: por que, se não causa dor ou medo de morrer, este afogamento faz falar terroristas suspeitos resistentes? A recolocação da palavra "tortura" no campo da "técnica aprimorada de interrogação" é a extensão da lógica politicamente correta: violência brutal praticada pelo Estado é publicamente aceitável quando a linguagem muda.

A defesa mais obscena feita do filme é a alegação de que Bigelow rejeita o moralismo barato, e de maneira sóbria apresenta a realidade da luta contra o terrorismo, levantando questões difíceis e que, assim, nos fazem pensar (ainda, alguns críticos adicionam, a diretora "desconstrói" clichês femininos – Maya não mostra sentimentalismo, ela é dura e dedicada em sua tarefa, como um homem). 

Mas, com a tortura, alguém pode não "pensar". Um paralelo com o estupro se faz, aqui, necessário por si mesmo: e se um filme mostrasse um estupro brutal neste mesmo jeito neutro, alegando que devemos evitar o moralismo barato e começarmos a pensar sobre o estupro em toda sua complexidade? 

Em nossas entranhas, fica a mensagem de que existe algo terrivelmente errado nisto. Eu gostaria de viver numa sociedade onde o estupro seja simplesmente inaceitável e que aquele que o relativize seja visto como um babaca excêntrico, não em uma sociedade onde alguém precise argumentar contra isto. O mesmo serve para tortura: um sinal de progresso ético está no fato da tortura ser "dogmaticamente" rejeitada como repulsiva, sem nenhuma necessidade de argumentação. 

Então o que dizer a respeito do argumento "realista": tortura sempre existiu, então não é melhor falar sobre isto publicamente? Este é, exatamente, o problema. Se a tortura sempre esteve aí, por que aqueles que estão no poder agora nos contam abertamente? Só há uma resposta: para normalizar, diminuir nossos padrões éticos.

Tortura salva vidas? Talvez, mas com certeza perdem-se almas – e a justificativa mais absurda é dizer que um verdadeiro herói está pronto para renunciar sua alma para salvar as vidas desta ou deste compatriota. 

A normalização da tortura vista em "A Hora Mais Escura" é um sinal do vácuo moral de que estamos gradualmente nos aproximando. Se há alguma dúvida sobre isto, tente imaginar um grande filme de Hollywood representando a tortura de um jeito similar 20 anos atrás. É impensável.

*Slavoj Zizek é um filósofo e escritor esloveno. É professor da European Graduate School e pesquisador sênior no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. Atua como professor visitante em várias universidades dos Estados Unidos.

Publicado originalmente em http://www.commondreams.org/

Tradução: Caio Sarack

O que o filme "Lincoln", de Spielberg, não diz sobre Lincoln

O filme “Lincoln”, de Steven Spielberg, que acaba de estrear no Brasil, narra como esse presidente de forte lembrança popular lutou contra a escravidão e pela transformação dos escravos em trabalhadores. O que a obra cinematográfica não conta, porém, é que Lincoln também lutou por outra emancipação: que os escravos e os trabalhadores em geral fossem senhores não apenas de sua atividade em si, mas também do produto resultante de seu trabalho.

O filme “Lincoln”, produzido e dirigido por um dos diretores mais conhecidos dos EUA, Steven Spielberg, fez reviver um grande interesse pela figura de Lincoln, um dos presidentes que, como Franklin D. Roosevelt, sempre apareceu no ideário estadunidense com grande lembrança popular. Destaca-se tal figura política como o fiador da unidade dos EUA, após derrotar os confederados que aspiravam à secessão dos Estados do Sul daquele Estado federal. É também uma figura que se destaca na história dos EUA por ter abolido a escravidão e ter dado a liberdade e a cidadania aos descendentes das populações imigrantes de origem africana, ou seja, a população negra, que nos EUA se conhece como a população afro-americana.

Lincoln foi também um dos fundadores do Partido Republicano, que em suas origens foi diretamente oposto ao Partido Republicano atual - este altamente influenciado hoje por um movimento – o Tea Party – chauvinista, racista e reacionário, por trás do qual existem interesses econômicos e financeiros que querem eliminar a influência do governo federal na vida econômica, social e política do país. O Partido Republicano fundado pelo presidente Lincoln era, pelo contrário, um partido federalista, que considerou o governo federal como avalista dos Direitos Humanos. E entre eles, a emancipação dos escravos, tema central do filme “Lincoln” e para o qual o presidente deu maior expressão. Terminar com a escravidão significava que o escravo passava a ser trabalhador, dono de seu próprio trabalho.

Lincoln, inclusive antes de ser presidente, considerou outras conquistas sociais como parte também dos Direitos Humanos e, entre elas, o direito do mundo do trabalho de controlar não só a atividade em si, mas também o produto resultante dela. O direito de emancipação dos escravos transformava o escravo em uma pessoa livre assalariada, unida – segundo ele – em laços fraternais com os outros membros da classe trabalhadora, independentemente da cor da pele. Suas demandas de que o escravo deixasse de sê-lo e de que o trabalhador – tanto branco como negro – fosse o dono não só de seu trabalho, mas também do produto de seu trabalho, eram igualmente revolucionárias. A emancipação da escravidão requeria que a pessoa fosse dona do seu trabalho. A emancipação da classe trabalhadora significava que a classe trabalhadora fosse dona do produto do seu trabalho. E Lincoln demandou os dois tipos de emancipação. O segundo tipo de emancipação, entretanto, nem sequer é citado no filme Lincoln. Na realidade, é ignorado. E utilizo a expressão “ignorado” em lugar de “escondido” porque é totalmente possível que os autores do filme ou do livro sobre o qual se baseia nem sequer conheçam a história real de Lincoln.

A Guerra Fria no mundo cultural e inclusive acadêmico dos EUA (que continua existindo) e o enorme domínio do que ali se chama a Corporate Class (a classe dos proprietários e gestores do grande capital) sobre a vida, não só econômica, mas também cívica e cultural, explica que a história formal dos EUA que se ensina nas escolas e nas universidades seja muito distorcida, purificada de qualquer contaminação ideológica procedente do movimento operário, seja socialismo, comunismo ou anarquismo. A grande maioria dos estudantes estadunidenses, inclusive das universidades mais prestigiadas e conhecidas, não sabe que a festa de 1º de Maio, celebrada mundialmente como o Dia Internacional do Trabalho, é uma festa em homenagem aos sindicalistas estadunidenses que morreram em defesa de trabalhar oito horas por dia (em lugar de doze), vitória que transformou tal reivindicação exitosa na maioria dos países do mundo. Nos EUA, tal dia, o 1º de Maio, além de não ser festivo, é o dia da Lei e da Ordem - Law and Order Day - (ver o livro People’s History of the U.S., de Howard Zinm). A história real dos EUA é muito diferente da história formal promovida pelas estruturas de poder estadunidenses.

As ignoradas e/ou escondidas simpatias de Lincoln
Lincoln, já quando era membro da Câmara Legislativa de seu Estado de Ilinóis, simpatizou claramente com as demandas socialistas do movimento operário, não só dos EUA, mas também mundial. Na realidade, Lincoln, tal como indiquei no começo do artigo, considerava como um Direito Humano o direito do mundo do trabalho de controlar o produto de seu trabalho, postura claramente revolucionária naquela época (e que continua sendo hoje) e que nem o filme nem a cultura dominante nos EUA lembram ou conhecem, que está convenientemente esquecida nos aparatos ideológicos do establishment estadunidense controlados pela Corporate Class. Na realidade, Lincoln considerou que a escravidão era o domínio máximo do capital sobre o mundo do trabalho e sua oposição às estruturas de poder dos Estados sulinos se devia precisamente a que percebia estas estruturas como sustentadoras de um regime econômico baseado na exploração absoluta do mundo do trabalho. 

Daí que visse a abolição da escravidão como a liberação não só da população negra, mas de todo o mundo do trabalho, beneficiando também a classe trabalhadora branca, cujo racismo ele via que ia contra seus próprios interesses. Lincoln também indicou que “o mundo do trabalho antecede o capital. O capital é o fruto do trabalho, e não teria existido sem o mundo do trabalho, que o criou. O mundo do trabalho é superior ao mundo do capital e merece a maior consideração (…). Na situação atual o capital tem todo o poder e há que reverter este desequilíbrio”. Leitores dos escritos de Karl Marx, contemporâneo de Abrahan Lincoln, lembrarão que algumas destas frases eram muito semelhantes às utilizadas por tal analista do capitalismo em sua análise da relação capital/trabalho sob tal sistema econômico.

Será surpresa para um grande número de leitores saber que os escritos de Karl Marx influenciaram Abraham Lincoln, tal como documenta detalhadamente John Nichols em seu excelente artículo “Reading Karl Marx with Abraham Lincoln Utopian socialists, Germam communists and other republicans” publicado em Political Affairs (27/11/12), e do qual extraio as citações, assim como a maioria dos dados publicados neste artigo. Os escritos de Karl Marx eram conhecidos entre os grupos de intelectuais que estavam profundamente insatisfeitos com a situação política e econômica dos EUA, como era o caso de Lincoln. Karl Marx escrevia regularmente no The New York Tribune, o rotativo intelectual mais influente nos Estados Unidos daquele período. Seu diretor, Horace Greeley, se considerava um socialista e um grande admirador de Karl Marx, quem convidou para ser colunista de tal jornal. Nas colunas de seu jornal incluiu grande número de ativistas alemães que haviam fugido das perseguições ocorridas na Alemanha daquele tempo, uma Alemanha altamente agitada, com um nascente movimento operário que questionava a ordem econômica existente. Alguns destes imigrantes alemães (conhecidos no EUA daquele momento como os “Republicanos Vermelhos”) lutaram mais tarde com as tropas federais na Guerra Civil, dirigidos pelo presidente Lincoln.

Greeley e Lincoln eram amigos. Na realidade, Greeley e seu jornal apoiaram desde o princípio a carreira política de Lincoln, sendo Greeley quem lhe aconselhou a que se apresentasse à presidência do país. E toda a evidência aponta que Lincoln era um fervente leitor do The New York Tribune. Em sua campanha eleitoral para a presidência dos EUA convidou vários “republicanos vermelhos” a integrarem-se a sua equipe. Na realidade, já antes, como congressista, representante da cidadania de Springfield no Estado de Ilinóis, apoiou frequentemente os movimentos revolucionários que estavam acontecendo na Europa, e muito em especial na Hungria, assinando documentos em apoio a tais movimentos.

Lincoln, grande amigo do mundo do trabalho estadunidense e internacional
Seu conhecimento das tradições revolucionárias existentes naquele período não era casual, e sim fruto de suas simpatias com o movimento operário internacional e suas instituições. Incentivou os trabalhadores dos EUA a organizar e estabelecer sindicatos antes e durante sua presidência. Foi nomeado membro honorário de vários sindicatos. Em sua resposta aos sindicatos de Nova York afirmou “vocês entenderam melhor que ninguém que a luta para terminar com a escravidão é a luta para libertar o mundo do trabalho, para libertar todos os trabalhadores. A libertação dos escravos no Sul é parte da mesma luta pela libertação dos trabalhadores no Norte”. E, durante a campanha eleitoral, o presidente Lincoln promoveu a postura contra a escravidão afirmando explicitamente que a libertação dos escravos permitiria aos trabalhadores exigir os salários que lhes permitissem viver decentemente e com dignidade, ajudando com isso a aumentar os salários de todos os trabalhadores, tanto negros como brancos.

Marx, e também Engels, escreveram com entusiasmo sobre a campanha eleitoral de Lincoln, em um momento em que ambos estavam preparando a Primeira Internacional do Movimento Operário. Em um momento das sessões, Marx e Engels propuseram à Internacional que enviasse uma carta ao presidente Lincoln felicitando-o por sua atitude e postura. Na carta, a Primeira Internacional felicitava o povo dos EUA e seu presidente por, ao terminar com a escravidão, haver favorecido a liberação de toda a classe trabalhadora, não só estadunidense, mas também mundial.

O presidente Lincoln respondeu, agradecendo a nota e dizendo que valorizava o apoio dos trabalhadores do mundo a suas políticas, em um tom cordial, que certamente criou grande alarme entre os establishments econômicos, financeiros e políticos de ambos os lados do Atlântico. Estava claro, a nível internacional que, como afirmou mais tarde o dirigente socialista estadunidense Eugene Victor Debs, em sua própria campanha eleitoral, “Lincoln havia sido um revolucionário e que, por paradoxal que pudesse parecer, o Partido Republicando havia tido, em suas origens, uma tonalidade vermelha”.

A revolução democrática que Lincoln começou e que nunca se desenvolveu
Não é preciso dizer que nenhum destes dados aparece no filme Lincoln, nem são amplamente conhecidos nos EUA. Mas, como bem afirmam John Nichols e Robin Blackburn (outro autor que escreveu extensamente sobre Lincoln e Marx), para entender Lincoln tem que entender o período e o contexto nos quais ele viveu. Lincoln não era um marxista (termo sobreutilizado na literatura historiográfica e que o próprio Marx denunciou) e não era sua intenção eliminar o capitalismo, mas corrigir o enorme desequilíbrio existente nele, entre o capital e o trabalho. Mas, não há dúvida de que foi altamente influenciado por Marx e outros pensadores socialistas, com os quais compartilhou seus desejos imediatos, claramente simpatizando com eles, levando sua postura a altos níveis de radicalismo em seu compromisso democrático. É uma tergiversação histórica ignorar tais fatos, como faz o filme Lincoln.

Não resta dúvida que Lincoln foi uma personalidade complexa, com muitos altos e baixos. Mas as simpatias estão escritas e bem definidas em seus discursos. E mais, os intensos debates que aconteciam nas esquerdas europeias se reproduziam também nos círculos progressistas dos EUA. Na realidade, a maior influência sobre Lincoln foi a dos socialistas utópicos alemães, muitos dos quais se refugiaram em Ilinóis fugindo da repressão europeia.

O comunalismo que caracterizou tais socialistas influenciou a concepção democrática de Lincoln, interpretando democracia como a governança das instituições políticas por parte do povo, no qual as classes populares eram a maioria. Sua famosa Expressão (que se converteu no esplêndido slogan democrático mais conhecido no mundo – Democracy for the people, of the people and by the people - claramente afirma a impossibilidade de ter uma democracia do povo e para o povo sem que seja realizada e levada a cabo pelo próprio povo. Daí vem a libertação dos escravos e do mundo do trabalho como elementos essenciais de tal democratização. Seu conceito de igualdade levava inevitavelmente a um conflito com o domínio de tais instituições políticas pelo capital. E a realidade existente hoje nos EUA e que detalho em meu artigo “O que não se disse nos meios de comunicação sobre as eleições nos EUA” (Público, 13.11.12)é uma prova disso. Hoje a Corporate Class controla as instituições políticas do país.

Últimas observações e um pedido
Repito que nenhuma destas realidades aparece no filme. Spielberg não é, afinal, nenhum Pontecorvo e o clima intelectual estadunidense ainda está estancado na Guerra Fria que lhe empobrece intelectualmente. “Socialismo” continua sendo uma palavra mal vista nos círculos do establishment cultural daquele país. E, na terra de Lincoln, aquele projeto democrático que ele sonhou nunca se realizou devido a enorme influência do poder do capital sobre as instituições democráticas, influência que diminuiu enormemente a expressão democrática naquele país. E o paradoxo brutal da historia é que o Partido Republicano se tenha convertido no instrumento político mais agressivo hoje existente a serviço do capital.

Certamente, agradeceria que todas as pessoas que achem este artigo interessante o distribuam amplamente, incluindo, em sua distribuição os críticos de cinema, que em sua promoção do filme, seguramente não dirão nada do outro Lincoln desconhecido em seu próprio país (e em muitos outros). Um dos fundadores do movimento revolucionário democrático nem sequer é reconhecido como tal. Sua emancipação dos escravos é uma grande vitória que deve ser celebrada. Mas Lincoln foi muito além. E disto nem se fala.

*Vicenç Navarro (Barcelona, 1937) é cientista social. Foi professor catedrático da Universidade de Barcelona e hoje dá aulas nas universidades Pompeu Fabra e Johns Hopkins. Por sua luta contra o franquismo, viveu anos exilado na Suécia. Este artigo foi publicado emhttp://blogs.publico.é/dominiopublico/6405/o-que-a-pelicula-Lincoln-não-dice-sobre-Lincoln/



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