segunda-feira, 6 de junho de 2011

Exposição no trânsito - Adesivos "Família Feliz"


Febre dos adesivos da "família feliz" cola no país todo. 

Mas há quem veja exagero no modismo

Você está parado em um congestionamento, algo comum para quem vive em qualquer grande cidade do país. Naquela lentidão dos carros, percebe algo curioso: adesivos de bonecos palito formam uma família feliz na traseira do 
veículo à sua frente. Roda mais um pouco, e lá estão eles em outro carro, agora arranjados de maneira diferente e com desenhos de cachorros e passarinhos. Uma boneca aqui, um gato ali, um homem e uma mulher grávida acolá. E você descobre a febre que tomou o país: os “adesivos da família feliz”.
A professora aposentada Alfa Torchia, de São Paulo, conta que os colocou em seu carro porque viu na rua e se identificou com a cena. “Sou evangélica e muito a favor da família, a favor da união. Então quis mostrar para todo mundo que tinha uma família, porque me orgulho dela. E a moda pegou, viu? Na minha igreja todo mundo colocou!”
Alfa tem adesivos na traseira do carro representando ela, o marido, as duas filhas adultas e o cachorro Kim, “que é parte da família”. Nos últimos dias, depois de ouvir comentários de que os adesivos poderiam ser perigosos por expor demais os donos do veículo, ela incluiu um sexto elemento: mais um cachorro, “para despistar bandidos”. O novo “membro” autocolante também serve para provocar: “Eu digo que é meu genro, aquele cachorro”.
Quem está rindo à toa com essa moda é o paulista Germano Spadini, dono de uma empresa de adesivos, que afirma ter sido o criador da coisa. Ele conta que em 2008, com o nascimento do filho, fez um adesivo com ele, a mulher e o bebê, para pôr no próprio carro. “As pessoas começaram a pedir, encomendar desenhos personalizados, e não parei mais. Mas o negócio estourou mesmo de um ano para cá.” Spadini chega a vender 8.000 adesivos por mês, fora os kits-padrão para revendedores. Cada personagem custa de R$ 2 a R$ 5, dependendo da cor e do tema. “Tem gente que encomenda tantos adesivos que eu fico pensando como vão caber no carro!” 
Histórias bizarras também não faltam: “Outro dia, um homem encomendou a família toda, mas pediu para deixar a sogra sem cabeça e ainda escrever ‘sogra’ embaixo. Teve uma mulher que pediu o gato com auréola, porque o bicho já havia morrido. Familiares falecidos com asas também são comuns”. A novidade, segundo o empresário, é o adesivo do “segurança” da família. “Como algumas pessoas estão falando que é perigoso, que dá informação para bandido, criei a linha de bonecos seguranças, para colar ao lado dos familiares.”
O que é motivo de piada para o inventor preocupa uma parte da população. Dar tanta informação sobre quantas e que tipo de pessoas formam aquele núcleo familiar poderia deixá-lo vulnerável a sequestros, assaltos e chantagens. Diversas reportagens, algumas sensacionalistas, outras coerentes, abordaram o assunto. Amigas da dona Alfa removeram os adesivos, com medo.
A Polícia Militar diz que é preciso cuidado, mas não os considera mais perigosos do que o modo como as pessoas se expõem em sites de relacionamento, na internet. De qualquer forma, eles já têm nome para a polícia. São os “adesivos currículo”, que contêm informações sobre a vida particular das pessoas. Além dos “adesivos da família feliz”, autocolantes de faculdades, academias e preferência religiosa, por exemplo, dão igualmente dicas importantes. 
A tensão causada pelos adesivos envolve sobretudo sequestro. No falso sequestro, por exemplo, poderiam ajudar golpistas a convencer a vítima de que há um familiar refém, pois eles teriam a ideia de como é a constituição da família. O veículo estacionado em garagens que permitam o acesso visual também poderia facilitar a vida de bandidos. A corporação militar, no entanto, afirma que os “adesivos currículo” não têm influência significativa nesse caso: “Conhecer a estrutura familiar não vai aumentar ou diminuir o potencial de uma pessoa se tornar vítima. Os sequestros-relâmpago, por exemplo, são crimes planejados, e os adesivos pouco podem acrescentar. O objetivo é encontrar uma pessoa com dinheiro e cartões bancários”.
O marido da assistente social Neiva Imhoss, de São Miguel do Oeste, Santa Catarina, não gosta muito dos adesivos que ela colou no carro: pai, mãe, dois filhos pequenos, passarinhos, tartarugas e dois cachorros. “Ele acha que é muita exposição, porque a cidade é pequena e todo mundo sabe que o carro é meu” conta. “Mas, então, ele que não cole no dele! No meu, só não coloquei as ovelhas que temos porque não couberam.” 
Neiva diz que aderiu ao modismo porque o filho de 3 anos via os desenhos nos outros carros e apontava. “Quando comprei, ele me ajudou a colar.” Segundo a assistente social, oito em dez carros em sua cidade têm os adesivos da família feliz, que são vendidos em todas as livrarias, bazares, bancas de jornal. “Também tem com as cores do Grêmio e do Inter, porque futebol é uma febre ainda mais antiga por aqui.” 
A auxiliar de escritório Roberta Santos, de 28 anos, também colocou os adesivos da família a pedido da filha Laís, em outubro de 2010. Na traseira do carro estão devidamente representados ela, o marido, as duas filhas e a cachorra. Em Atibaia (SP), todos sabem que aquele carro é dela. 
“Não dá para fazer nada de errado, todo mundo sabe que ele é meu por causa dos adesivos! Um dia desses, meu marido ficou com o carro e foi me buscar no trabalho. O vigia achou que era eu, mas quando viu que eu estava dentro da loja, ficou superconfuso e veio perguntar quem estava dentro do meu carro.” O marido, o gerente de produção Julio Cesar dos Santos, de 38 anos, não se importa com os adesivos, e ela diz que não acha a moda perigosa. “Se alguém for nos assaltar ou fazer mal, não será por causa dos adesivos. Acho isso uma besteira.”

“Família Doriana”

Mas por que essa onda em 2011? A psicanalista Dinah Stella Bertoni afirma que há algumas explicações. Segundo ela, a sociedade atual parece valorizar o ser humano mais pela imagem que ele transmite publicamente do que pela troca de experiências proporcionada pelas relações humanas. “Essa tendência tem sido cada vez mais intensa, e aquilo que deveria ser íntimo passa a ser exposto, como no caso das redes sociais, dos reality shows e dos tais adesivos, que promovem o conceito de ‘família Doriana’ ”, diz Dinah, numa alusão às famílias perfeitas dos comerciais de margarina. 
Para o arquiteto e urbanista Giancarlo Morettoni Júnior , os veículos se tornaram membros da família e recebem muitas vezes mais cuidados do que os parentes de carne e osso. “Os carros na sociedade moderna ocidental são sagrados, quase como as vacas na Índia. Fazem parte da família.” Ele lembra que a garagem da casa geralmente é maior que os quartos, assim como as vagas dos escritórios são maiores que as baias. As cidades são projetadas para os carros. “Eles são protegidos até do frio e da chuva… O marido leva o carro para lavar, encerar, passar produtos especiais, e não deixa a mulher ir ao cabeleireiro porque é caro. Representar a família com os adesivos é parte dessa lógica, porque o carro está mais do que inserido na família e, para muitos, é mais importante que ela.”
No Rio Grande do Sul, os adesivos se tornaram tão presentes que um grupo de amigos resolveu brincar com o assunto. Eles inventaram a “guerrilha dos adesivos da família”, e saíram colando componentes a mais nos carros. Onde antes tinha apenas um casal, apareceu uma moça ao lado. Onde tinha pai, mãe e criança, de repente surgiu uma mulher grávida. Os “guerrilheiros” filmaram a ação e jogaram no YouTube. A brincadeira rendeu mais de 230 mil views e repercutiu em todo o país. 
Marcos Piangers, um dos autores da façanha, diz que a ideia era provocar. “Achamos aquilo meio patético, essa mania moderna de tentar exibir para os outros como você é feliz, como sua família é perfeita. Toda família, vista de perto, tem defeitos”, diz Piangers. “E as pessoas fazem isso o tempo todo, no Facebook, no Orkut, nas frases do MSN, sempre tentando mostrar que a vida delas é ou está incrível.” Dessa constatação nasceram adesivos que aludem a um bebê indesejado, um amante, um casal gay, “esse tipo de coisa que acontece, mas ninguém anuncia”, pontua.  
Piangers conta que ele e os amigos não esperavam para ver a reação das pessoas porque acharam mais engraçado deixar o dono do carro imaginar o que teria acontecido. “Além do que esperar o dono do carro aparecer seria muito mais trabalhoso.” Apesar das críticas, ele afirma que não houve nenhuma preocupação social e política. “Apenas fazer rir e questionar essa mania besta.”
Para a psicóloga Dinah, a “mania besta” diz muito sobre nosso tempo. “A impressão que se tem é que cada vez mais precisamos da visão alheia para nos sentirmos aprovados, seguros de nossos papéis sociais e, por que não dizer, para que não nos sintamos sozinhos. A opinião que mantemos sobre nós não parece mais suficiente. Necessitamos de um olhar que aprove nosso corpo, ‘curta’ nossas opiniões e que nos ‘siga’, mesmo nos momentos de privacidade.” 
Dinah aborda também a questão do modelo familiar, por que se busca tanto a imagem de família tradicional, a exibição do clichê “mãe-pai-filhos-animal de estimação”. Isso parece indicar, em sua opinião, um receio de que os novos arranjos familiares – o namorado da mãe ou o meio-irmão da nova família do pai – ameacem a função familiar, que é transmitir valores e construir nossa identidade. E conclui com uma proposta: “Devemos valorizar mais a convivência familiar real, em vez de mantê-la numa imagem paralisada, com expressão de felicidade. Precisamos procurar nossa família, discutir essas novas configurações e expressar o amor por todos os seus membros também do lado de dentro do carro, por meio do cuidado e da aceitação das diferenças.” 

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