terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Objetivo da PM era 'dominar e eliminar' moradores do Pinheirinho, diz secretário


Paulo Maldos, da Articulação Social, considera que presença da imprensa evitou "extermínio" e relata outros atos de abuso de autoridade
Publicado em 31/01/2012, 12:00
São Paulo – O secretário nacional de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República, Paulo Maldos, acredita que a Polícia Militar estava orientada a "dominar e eliminar" os moradores do Pinheirinho durante desocupação da área, na última semana.  O relato foi dado em audiência na Câmara Municipal de São José dos Campos, interior paulista, na noite da segunda-feira (30).
Maldos esteve durante nove horas no dia 22, dia da reintegração de posse da comunidade em São José dos Campos. Ele estava na cidade como representante do governo federal com o objetivo de buscar alternativas negociadas e sem violência, para solucionar a questão de fundo que envolvia a reintegração de posse do terreno: a falta de moradia.
Porém, iniciada a ação policial para retirar os moradores, Maldos tentava conversar com o comandante da operação e com as lideranças dos movimentos sociais, quando acabou atingido na perna por uma bala de borracha. Em seu depoimento, ele assegura que os policiais usaram de violência desmedida para cumprir a ordem judicial de despejo.
"Foi perceptível a agressividade infinita, tanto dos policiais militares como da Guarda Civil", relatou o secretário. "A PM disse que estava com armas não-letais. Eu percebia claramente que os policiais sacavam armas letais (de fogo)." Ele conta que os policiais apontaram armas em sua direção quando ele falava com moradores do bairro Campo dos Alemães, que haviam expressado solidariedade aos vizinhos do Pinheirinho.
Ele reforçou ainda que a estratégia policial foi desmontar a articulação dos moradores e anular uma possível resistência. "Durante todas as horas que fiquei lá, percebi que eles (os soldados) estavam orientados a não estabelecer nenhum tipo de contato, seja com pessoas ou instituições. Eles estavam organizados sempre em bloco, para ataque maciço", frisou.
Maldos disse ainda que um "extermínio" só foi evitado pela grande presença de profissionais de imprensa na reintegração e pela pressão dos movimentos sociais."A atitude deles era de tratar todos aqueles moradores do Pinheirinho ou dos bairros em volta como inimigos. O objetivo ali era (fazer os moradores) serem atacados ou eliminados fisicamente."

Tratamento da PM

Apesar dos ataques, Maldos afirmou que sempre voltava ao ponto em que se concentravam os oficiais para tentar acessar o comando da operação. Enquanto conversava com jornalistas, que também estavam por perto, tentou participar de uma entrevista coletiva dada pela PM no local. "Tentei ir junto, justamente para poder falar com eles", disse. Na tentativa, porém, foi barrado por um policial que lhe negou o acesso.
"Tirei meu cartão, com o brasão da Presidência da República, e cheguei a colocar na mão dele. No cartão constava todas as informações - de onde eu sou e do cargo de secretário nacional. Ele leu tudo, e falou que eu não entrava", detalhou o representante do governo. Na tentativa de explicar sua missão no local, Maldos foi interrompido pelo oficial: "Você volta e fala para sua presidenta falar comigo, se quiser". O depoimento fez com que as pessoas presentes na audiência pública reagissem com espanto.
A ação, ordenada pela Justiça de São Paulo, suplantou uma decisão do Tribunal Regional Federal, que suspendia a operação. Também desrespeitou um acordo firmado no Tribunal de Justiça de São Paulo, que suspendia a reintegração por 15 dias. A desocupação do terreno de 1 milhão de metros quadrados favoreceu o megaespeculador Naji Nahas. Atualmente, as famílias que tiveram suas casas demolidas se dividem entre abrigos oferecidos pela prefeitura e casas de amigos.
As denúncias de agressão física e danos materiais estão sendo colhidos por entidades como o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), e encaminhados à Defensoria Pública e Ministério Público Estadual.

domingo, 29 de janeiro de 2012

INFELIZ ANIVERSÁRIO, KASSAB!

Kassab entra em seu último ano de mandato com nota de reprovado como prefeito



O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, entra em seu último ano de mandato em 2012 com nota vermelha. A poucas semanas de a cidade comemorar seus 458 anos, uma pesquisa apurou a nota que a população lhe dá: 4,5. Depois de assumir a prefeitura em 2006 no lugar de José Serra e ganhar nas urnas, em 2008, o direito de permanecer, Kassab destacou-se por suas lições sobre como valorizar imóveis. Se o presidente do PSD desistisse da política, o ramo imobiliário o esperaria de braços abertos. Não por acaso, ele já foi membro do Conselho Regional de Corretores de Imóveis.
Em seus quase seis anos de gestão, Kassab jogou em muitas posições, defendeu, atacou e marcou muitos gols para o time das construtoras, empreiteiras e incorporadoras. Outros, ele ainda espera marcar em seu último ano, como a venda de 20 terrenos municipais para a iniciativa privada em troca da construção de creches. Quanta bondade. Vender terrenos em áreas nobres, das mais caras do mundo, suspeitas de inflar uma bolha imobiliária, em troca de creches. Estariam aí as 140 mil vagas que a maior cidade do continente precisa?
Tirando as do mercado imobiliário, o prefeito se mostrou ruim de metas. Atingiu 23,8% das que ele mesmo se deu. Deixou de construir três hospitais e corre com o asfalto atrasado, pois outubro vem aí
Ah, tem a desapropriação de milhares de imóveis – fala-se em 10 mil –, de bairros do distrito do Jabaquara, zona sul. A operação urbana consorciada Água Espraiada vai remover perto de 30 mil pessoas para a construção de um túnel de alguns bilhões de dólares para ligar a Avenida Roberto Marinho à Rodovia dos Imigrantes. Outro projeto aplaudido pelas incorporadoras é a desapropriação de 45 quarteirões da região histórica da Luz e de Santa Ifigênia. Pela proposta da prefeitura, os dois bairros serão administrados por quem pagar mais e ganhar a licitação. Em troca, a empresa ou grupo poderá desapropriar imóveis de quem mora ou tem negócio por lá.
E, como nenhuma profissão é um mar de rosas, Kassab também entrou em bolas divididas e causou expulsões. Por muito tempo, artistas de rua foram reprimidos e impedidos de exibir-se­ na cidade. Que perigo uma estátua viva representa? Ou um garotinho cantor que sonha com o estrelato? Ou uma dupla de repentistas desafiando-se enquanto provoca risos a sua volta?
Outro jogo feio foi a tentativa de reduzir a merenda de creches, aumento do IPTU em até 300%, jogar jatos d’água em morador de rua de madrugada, fechar albergues, mandar a guarda civil retirar à força pessoas em situação de rua, virar as costas aos dependentes de crack, criminalizar movimentos sociais, mandar a polícia em cima de estudantes contrários ao aumento do ônibus, retirar terreno de catadores de materiais recicláveis, não usar os recursos para obras antienchentes.
Para os trabalhadores dos serviços públicos, dá-lhes vale-coxinha, que ainda pode virar vale-ossinho. Discutir salário é bola dividida, e ele chuta para o lado que está virado. Nesse jogo, teve também cabeçada em camelôs, cheques-despejo de R$ 300 para famílias removidas de diversas áreas da cidade, de preferência para bem longe de onde a vida delas acontece.
Tirando as do mercado imobiliário, o prefeito se mostrou ruim de metas. Atingiu 23,8% das que ele mesmo se deu. Deixou de construir três hospitais e corre o asfalto atrasado, pois outubro vem aí. Mas não para deixar um tapete os corredores de ônibus que não fez. Não ia ser ele, que valoriza tanto a cultura paulistana, que começaria a rever a cultura de privilegiar os automóveis que entopem as ruas.
Não foi à toa que a torcida chiou. Pagou para ver um prefeito que atingiu 60% de ótimo/bom durante as propagandas televisivas da campanha eleitoral de 2008. E agora, segundo pesquisa Datafolha divulgada em dezembro, 72% dos paulistanos acham que o prefeito não cumpriu o que se esperava dele – isso num tempo de economia aquecida e arrecadação em alta. Mas nem tudo está perdido. Neste janeiro, São Paulo comemora seu último aniversário tendo Kassab como prefeito­. E como controlar o descontentamento da população em outubro­? Controlar? Ops...

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Caos toma conta de novo abrigo para moradores do Pinheirinho



Falta de água, calor excessivo, superlotação, pessoas passando mal, crianças chorando: em questão de minutos, o novo abrigo para os moradores despejados da comunidade Pinheirinho, um ginásio no bairro Parque do Morumbi, zona sul de São José dos Campos (SP), virou um caos.

Os dois únicos banheiros do ginásio estão sem água. Os chuveiros e as descargas não funcionam. Os desabrigados reclamam do calor excessivo no interior do local. Até as 18h desta quarta-feira (25), pelo menos quatro pessoas foram hospitalizadas após se sentirem mal.


As cerca de mil pessoas que foram alojadas no local estavam na igreja do bairro Campo dos Alemães, vizinho ao Pinheirinho, onde não estavam recebendo assistência da prefeitura. Elas haviam se recusado a ir a abrigos da prefeitura --onde os alojados recebem comida, produtos de higiene e colchões-- temendo as condições do local.

ÁREA É DESOCUPADA PELA PM
EM SÃO JOSÉ DOS CAMPOS (SP)

  • Arte/UOL
Hoje, decidiram migrar para o ginásio, após a igreja alegar não ter mais condições de abrigar as famílias. Caminharam por cerca de 4 km, sob um calor de 35ºC, até o novo abrigo. Diante da situação, a Prefeitura de São José dos Campos decidiu que irá distribuir as pessoas em outros abrigos --um deles no Jardim do Sol, também na zona sul do município.

“Aqui é muito quente, não há ventilação. Temos que comer sentados no chão”, reclama Priscila de Oliveira Santos, 23, que está no abrigo com o marido e dois filhos --uma menina de um mês e meio e um garoto de três anos.

Solitário, Geldásio Santiago dos Santos, 61, se queixa da superlotação. “Não há condições de ficar tanta gente aqui. Na igreja está melhor”, diz . O pedreiro Mauro Celso dos Santos, 31, que está no abrigo com a mulher e quatro filhos, também reclama do calor. “Parece um forno micro-ondas. Três pessoas já desmaiaram. O pessoal não está querendo ficar aqui.”

O desempregado Rafael Aparecido, 28, era o mais revoltado: com uma filha de dez meses e outra de dois anos, ele reclama da falta de água para lavar as mamadeiras das garotas e de não haver um fogão para esquentar o leite. “Hoje minha filha disse que queria voltar para casa. Como fica um pai ao ouvir isso?”, desabafa. “Meus R$ 7.000 de investimento que usei para construir meu barraco no Pinheirinho foram embora”, acrescenta.

Por volta das 18h10, um carro-pipa chegou ao ginásio para abastecer a caixa d’água. Apesar do caos no abrigo, as assistentes sociais estão distribuindo fraldas, medicamentos, colchões e cobertores ao desabrigados. Também estão cadastrando as famílias para que recebam o aluguel social, um auxílio de R$ 500 que será pago pelo governo do Estado aos despejados do Pinheirinho.

A prefeitura informou que colocou à disposição oito escolas e ginásios para atender os desabrigados. Na segunda-feira (23), o prefeito Eduardo Cury (PSDB) afirmou que os alojamentos não tinham sido abertos pelo baixo número de pessoas que procuraram ajuda.

Processo

Mais cedo, o representante do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (Condep), Renato Simões, informou que foi aberto um processo para apurar as denúncias de abusos cometidos contra os moradores do bairro durante a ação policial. O órgão investiga as suspeitas de violações cometidas por parte de integrantes dos governos estadual e municipal.

O coronel da Polícia Militar Manoel Messias Mello, que comandou a operação de reintegração, diz não ter presenciado ou ter recebido informações de casos de violência e abuso. “Usamos armas não letais. Fizemos o necessário para conter a pressão”, afirmou. O policial disse que foi empregado elevado número de PMS na ação (2.000) para diminuir a possibilidade de confronto. “Quando se põe muita gente é para desestimular um confronto forte. É uma medida preventiva. Sabemos que isso foi perfeitamente favorável.”
Ontem, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) prometeu dar bolsa-aluguel para 960 famílias do Pinheirinho cadastradas pela Prefeitura de São José depois da reintegração. Segundo o advogado, o movimento exigirá que sejam pagas 1.500 bolsas para atender famílias que não se cadastraram.

Supostos desaparecidos

Na noite de ontem, em assembleia, os moradores criaram uma comissão para procurar sete pessoas que estariam desaparecidas desde a operação.
Um dos presentes, o servidor público Antonio Carlos dos Santos, 63, afirma não ter notícias da irmã e de três sobrinhos desde a desocupação. Ele deixou o município de Caçapava e foi até São José dos Campos atrás dos familiares, mas diz que não os encontrou nos abrigos onde estão as famílias. “Estou desesperado. Já faltei no trabalho dois dias para procura-los, mas não os acho."
A polícia não confirma que haja desaparecidos após a operação. Segundo balanço oficial, cerca de 20 pessoas ficaram feridas e não houve registro de mortos.

A área

Com 1,3 milhão de metros quadrados, a área que abrigava a comunidade pertencia à massa falida da Selecta, do investidor Naji Nahas. O terreno havia sido ocupado há oito anos pelas famílias e foi desocupado por decisão do Tribunal de Justiça do Estado.
Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), havia cerca de 6.000 moradores no Pinheirinho, mas menos de 3.000 foram cadastradas pela prefeitura de São José dos Campos. (Com Agência Brasil)

PINHEIRINHO: O DIA DA INFÂMIA!


"Não deu tempo de pegar nada. Eles disseram: deixa tudo aí, depois vai voltar para buscar. Peguei o que deu", relata moradora
O dia começou cedo no último domingo, 22 de janeiro, em São José dos Campos, interior de São Paulo. Depois de chuva forte, havia muita lama por toda a área do Pinheirinho. Às 5 horas da manhã, todos estavam recolhidos em casa, relativamente mais calmos depois que a ordem de despejo, imaginavam, havia sido suspensa.
Janaína (que pede para não ter o sobrenome citado), seu marido e filhos dormiam. Então veio o estrondo, seguido por sons diversos, despertando as famílias que vivem na área para um pesadelo.

Ela conta, com um olhar distante e um semblante tranquilo, algumas horas mais tarde, o que aconteceu nessa madrugada: “A maioria estava dormindo quando eles entraram. Eu acordei com o barulho do helicóptero. Abri o portão e meu vizinho estava gritando. Eles já estavam quebrando. Não tinha como ficar. Eles entraram em casa atirando. É uma covardia o que eles estão fazendo”.
Um susto. Porta arrombada. Gás. Na rua, caos, correria. Barulhos de tiros. Gritos. Todos saindo de casa atordoados.
“A gente sabia ali que a qualquer hora podia vir a polícia pra cima”. Mas foram pegos de surpresa.
“Sai de casa, sai, sai”, gritou um policial para uma senhora. Ela ainda estava assustada no início da tarde. “Não deu tempo de pegar nada. Eles disseram: deixa tudo aí, depois vai voltar para buscar. Peguei o que deu”.
"Peguei o que deu", diz morador. Foto: Maíra Kubík Mano
“Peguei o que deu” foi uma expressão corrente. Adrian pegou as galinhas e a mãe. Teve gente que pegou o filho, o bebê. Algum carrinho de mão com um amontoado de objetos. Outros conseguiram jogar uns poucos bens, como aparelho de som e televisão, no porta-malas de carros. Cães. Os bichos deveriam vir junto impreterivelmente. Alguns, saindo do susto, aparentemente mais calmos, acreditaram nas palavras dos policiais e que a senha de papel que receberam daria direito a ir e ver, logo em seguida, a casa intacta para retirar o que quiser.
Janaína ficou confusa quando percebeu que tinha medo da polícia. “Na realidade, a gente tem eles para proteger a gente. Mas nesse caso, eles estão protegendo ninguém.” Uma senhora disse, com ar meio irônico: “liguei para o 190 para chamar a polícia!”
A confusão em torno do papel da polícia (medo ou confiança?), para a moradora do Pinheirinho, tem origem na Justiça.
“A juíza mandou e aproveitaram hoje, domingo, porque a liminar federal vai para ela amanhã (segunda-feira). Agora a maioria do povo vai para alojamento. Ainda tem bastante gente lá dentro. Não querem deixar as pessoas saírem nem entrarem”, conta Janaína, nessa tarde longa de um dia de medo e tensão.
Troa de choque durante a desocupação. Foto: Felipe Milanez
Ela mora há 8 anos na ocupação, desde seu início. E segue: “À noite vai ser pior, vão quebrar tudo. Já tem trator lá, mas não sabemos se derrubaram as casas. Eu não tirei nada, só estou com a roupa do corpo. Eu tirei meus filhos de manhã cedo e meu marido ficou. Ele saiu depois e só pegou alguns documentos. O resto ficou para trás: móveis, eletrodomésticos tudo. Meus filhos estão todos sem roupa”, afirma, apontando para uma menina descalça.
A reintegração de posse foi autorizada pela juíza da 6ª Vara Cível de São José, Márcia Mathey Loureiro. “Se ela aparecer aqui vai ser linchada ou morta”, vocifera Ivonete, empregada doméstica e mãe de três filhos. “Eu tenho que batalhar para sobreviver. Meu marido está preso e eu nem tenho dinheiro para ir visitar ele. Tudo vai para as crianças”.
A entrevista é interrompida por três vezes. Ivonete se perde e é reencontrada em instantes em meio à correria das balas e bombas.
Cheiro de fumaça, cheiro de borracha queimada, marcas pretas no chão. “Parece Bagdá”, comenta um amigo. “Faixa de gaza”, diz um jovem. “Palestina!”, gritou outro, numa roda de papo falando sobre o que está acontecendo.
Carros incendiados nas ruas de acesso avisam, a quem possa interessar, qual é a real situação. Mais perto, tudo fica pior. Tensão era tão visível no ar que ele estava pesado – talvez pelo cheiro de tanta fumaça misturada.
Tumulto. Gente caminhando para todos os lados. Desnorteados, às vezes, como zumbis pobres carregando sacolas, botijões, coisas em carrinhos de bebês, bebês nos colos.
Um helicóptero na cabeça intimida qualquer um. Mais tarde, veio outro, mais amedrontador. Deles saiam bombas de gás químico, insuportáveis ao nariz e olhos. Pendurado para fora da aeronave, o atirador de elite aponta sua metralhadora indiscriminadamente. Isso cria um pânico no chão. O barulho das hélices voando baixo permanece durante todo o dia, ora mais forte, ora mais distante.
Moradores montam barricada perto de casa. Foto: Felipe Milanez
Estratégia de terror psicológico. Cerco. Estão na frente, estão atrás, estão do lado, estão por cima. Polícia por todos os lados. Cercados. Não há para onde fugir, e mesmo assim, agridem.
“Foi a maior guerra aqui de manhã. Os guardas municipais atiraram com bala de verdade. Foi feio”, comenta Maria, que mora próxima à entrada do Pinheirinho e tem amigos lá dentro. “Tinha muita gente machucada. A escola foi queimada, o povo está revoltado. A polícia entra atirando, como se a gente fosse cachorro. Ninguém é cachorro aqui”.
“E não temos notícia lá de dentro. A gente só vai saber mesmo o que aconteceu lá dentro depois que o Choque sair daqui. Aí a gente vai ver o prejuízo”, complementa uma vizinha.
“Lá dentro”, como chamam a área cercada pela PM, ninguém entra.
Capitão Antero, do setor de comunicação, responsável pelo atendimento da imprensa, tenta ser simpático e convincente. Chove um pouco, os jornalistas são minguados nessa tarde, circulando como os moradores, de lado pra lado, desnorteados. Como a polícia também.
“Preparamos a escola para receber vocês”, ele avisa, como um hostess de um clube. “Tem computador, lugar para descansar. Mas esta sala está sem energia. Podem circular à vontade por aqui”.
Helicóptero da PM foi usado na operação. Foto: Felipe Milanez
E passa a falar da organização da operação, do planejamento exato que diz ter sido feito, de como a PM não agiu com violência alguma, “o ferido foi em um confronto com a GCM (a Guarda Civil Municipal)”.
Ao que importa: o que está acontecendo “lá dentro”? É possível entrarmos?
A resposta: “nem acompanhado da polícia. Lá dentro ninguém entra. Onde está ocorrendo a ação não pode entrar. pois não podemos garantir a segurança.”
Quanto mais perto da entrada do Pinheirinho, mais gente se aglomera.
Uns eram curiosos do bairro, excitados com toda aquela movimentação. Outros, moradores da região que achavam a reintegração absurda, assim como a ocupação militar na porta de suas casa.
E havia, claro, centenas de pessoas recém-despejadas. A área tinha cerca de 1.600 famílias. Todo mundo deveria sair imediatamente, deixando tudo o que tem em casa, para ter então a sua situação reconhecida pelas autoridades num processo que a polícia militar estava chamando, quando perguntada, de “recadastramento”.
Janaína e Maria estão paradas em frente ao terreno onde a Prefeitura de São José dos Campos coloca os desabrigados. Observam tudo o que acontece. Maria está com o celular na mão, gravando vídeos e tirando fotos. Mostra imagens do carro da TV Vanguarda pegando fogo e de um policial empunhando uma arma contra ela e dizendo que não ela não podia filmar.
Policiais se armam contra moradores. Foto: Felipe Milanez
Começa uma correria dentro do alojamento. Depois de uma conversa rápida com um advogado do Pinheirinho, os moradores decidem derrubar parte da cerca dessa área onde estavam confinados pela Prefeitura. O lugar mais parece um campo de concentração do que de refugiados. Tudo vigiado pela Guarda Civil Metropolitana que manteve, ao longo de todo o dia, cenas de confronto quase ininterrupto com a população que era obrigada a entrar, pela PM, nesse reduto. Era algo como: se correr o bicho pega, se ficar, o bicho come. Bicho mau, no caso a GCM, que foi ainda mais truculenta com os moradores.
Funcionários do município que colocavam arames farpados nas grades do terreno são surpreendidos por um grupo de 20 pessoas. Com algum esforço, um pedaço da cerca verde vai ao chão. Bombas de gás estouram naquela direção e ouve-se o barulho de tiros. Dois carros da polícia cantam pneus na rua do lado para afastar os moradores do bairro. Um militante do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), Guilherme Boulos, é espancado pela polícia e levado preso. Horas depois, soube-se que ele recebeu cuidados médicos algemado.
Vem à mente a frase do capitão Antero: “ferido? só em um confronto com a GCM”. Bastava andar pelas ruas para ver pessoas mancando com faixas, como um senhor de setenta anos, todo machucado, ou jovens que mostravam as marcas de balas no corpo como tatuagens, ou Reinal Ferraz da Cunha, que levanta a calça para quem quiser ver a marca de bala de borracha em sua perna esquerda. “Foi à queima-roupa”.
O movimento diminui e a situação parece ficar novamente calma, mas tensa.
As tendas da praça são brancas, como aquelas utilizadas em raves e em shows de música, em festivais.
As placas eram simpáticas como se fossem para receber convidados. São parte do “planejamento minucioso da operação” mencionado pelo capitão Antenor – que fez questão de ressaltar que “a polícia Militar não faz atendimento social”.
Faixas brancas com escritos azuis na entrada. A primeira delas dizia, de forma convidativa: “recepção.” Nas cadeiras apenas alguns moradores, nenhum funcionário.
Depois, como no parque temático, seguiam os dizeres de diversos serviços do Estado, aos quais os moradores do Pinheirinho não tinham acesso onde viviam: “Conselho Tutelar”; “Atendimento Social” (que “não é serviço da PM”, fez questão de ressaltar o capitão); “Alimentação”; “Alojamento”.
Mais um espaço com muitos computadores desligados, estes que serviriam para fazer o cadastramento da população. Quem planejou a operação, aparentemente, sabia como receber convidados em um grande evento. Não contava, no entanto, com a dura realidade da situação.
Ronaldo está na fila para passar pelo processo de triagem. “Triagem? Que diabos é isso? Só ouvi falar em trilhos lá em Minas Gerais”, balbucia.
“Eu construí uma casa de cinco cômodos no Pinheirinho e agora querem me mandar para tendas. Eu não sou índio para morar em tendas!”
Josias, pedreiro, já foi registrado no cadastro da Prefeitura. “Eles deram essa numeração aqui”, aponta para uma etiqueta colada no peito. “Disseram para tirarmos só os pertences de roupas, documentos. Nem no Rio de Janeiro, que tem traficantes perigosos, foi esse confronto todo. Aqui só tem gente humilde, trabalhadora”, reclama.
Guarda Civil dá as boas vindas à população. Foto: Felipe Milanez
“Saímos do Pinheirinho às 4 horas da manhã. Já é de tarde e nem deram comida para a gente. Daqui a pouco a maioria de nós vai perder o emprego. Nem as nossas coisas querem que tirem. Amanhã, quando eu chegar na firma, eles não querem saber dos meus problemas. Se eu não aparecer, mandam embora. Todo mundo tá sem teto aqui”.
Em seguida, pães franceses – sem mortadela, manteiga ou algo do gênero – são distribuídos para mãos desesperadas.
Edvaldo, ao seu lado, está nervoso. “Aqui não é favela, é um bairro. Nós queremos que legalizem o terreno. Nós queremos construir as casas do nosso próprio bolso, não precisa dar nada”.
“Chegaram às 4 horas da manhã jogando bomba de gás. Já mataram gente, tem um aleijado. A Guarda Municipal deu três tiros num moleque. Eu vi”, diz Josias. Nenhuma morte foi confirmada até agora, mas muitos boatos e depoimentos correm soltos, inclusive de uma criança pequena que teria falecido intoxicada com o gás lacrimogênio – algo que seria plenamente factível pelas cenas que presenciamos.
“Já tem mortos lá dentro. Eu não vi, mas todo mundo está falando. Tem um que está no hospital, acordou agora. A mãe dele me disse que ele pode ficar paralítico. Não podia ter entrado com bala de verdade, mas todo mundo está usando elas”, afirma Janaína.
Pouco depois, quando a luz do fim do dia começa a se apagar, tem início um novo tumulto assim que um trator acelera em direção à ocupação.
Os moradores tiveram a certeza de que suas casas seriam derrubadas. Havia um cordão de policiais ao longo de uma corda azul de nylon. “Não pode passar da corda”, gritou uma policial quando passamos, quase sem perceber, em direção ao Pinheirinho.
O motor do trator é barulhento. Atravessando essa avenida com um canteiro no meio, estava a praça na qual os moradores estavam reclusos, nas tais tendas.
Trator é usado para 'limpar' o terreno após desocupação. Foto: Felipe Milanez
O trator avança e a PM mantêm-se burocraticamente calma. Mas a notícia começa a se espalhar dentro da praça. E os moradores, assustados, a correr. Gritos. Xingamentos da PM. Ao lado dos policias, dois jornalistas vestem coletes a prova de bala da cor azul-claro (ou, o popular azul-calcinha). São da afiliada da Globo e foram os únicos autorizados a entrar dentro da área do Pinheirinho (uma exceção à regra da “imprensa não entra” emitida pelo Capitão Antero).
Pedras. Mais xingamentos. Surpresa. Gritos agudos de mulheres em prantos: “minhas coisas”. “Filhas da puta”. “Filma isso” e “fala a verdade aí, o Globo”.
Desesperados, e atrás das grades altas, verdes, os moradores temiam ser passados para trás mais uma vez. Os papéis que haviam recebido para, depois do confronto, retornar às suas casas e retirar seus pertences, não serviriam para nada. Enfeitariam o chão das ruas, voando com o vento dos carros da polícia que passavam correndo a alta velocidade e cantando pneus para assustar aos moradores.
Os escudos foram armados. Passaram informação no rádio e um pelotão veio caminhando em passo firme pela rua que faz a divisa com o Pinherinho. Passo militar. Foi cômico quando o primeiro da fila parou e levantou a mão, e os últimos, sem prestar a atenção, olhando para as pedras e os xingamentos, juntaram-se a ponto de tropeçar nos parceiros da fila.
Alguns carregavam granadas de gás na mão. Foi dada a ordem para preparar. E avançaram em direção à grade e pela rua. Muitos tiros e bombas são lançados para a praça. Alguns policiais, mais atrevidos e nervosos, correram até a grade, aos gritos: “O Pinheirinho agora é nosso”, disse um, sem identificação, atirando. Apontava a arma reta, na altura do ombro.
Nas tendas agora enfestadas de fumaça tóxica também estavam mulheres, crianças, famílias. Todas deitadas, pensando ser ali o alojamento. A GCM se somou à PM e respondia com tiros e mais bombas em direção aos manifestantes, recuados numa ponta. Atacados dois lados, eles não sabiam mais para onde correr. Gritos, muitos gritos de desespero.
Na rua, todos entram na primeira casa que viam com o portão aberto. A polícia segue avançando em paralelo à grade. Muita fumaça. Tanta fumaça que o pelotão, em mais uma cena de comédia e tragédia, passava pelo meio da fumaça que haviam provocado para assustar os moradores e terminava com os próprios olhos ardendo. Dava para ver os policiais lacrimejando – como nós, ali do lado.
Mas mesmo com os olhos inflamados, sem máscara e com a visão prejudicada, eles não paravam de atirar. Claramente assustados, tentavam assustar ainda mais os moradores.
'Não houve violência', garante a polícia. Foto: Maíra Kubík Mano
Os boatos continuavam a circular. Duas moradoras mostram os números que haviam ganhado num papel. Outra, uma pulseira azul, utilizada por várias senhoras. A pulseira servira para marcar os moradores legítimos do Pinheirinho que teriam direito a um alojamento. E os números distribuídos seriam o direito ao retorno a suas casas para recolher os bens. Assim pensavam as entrevistadas. Nova decepção veio quando surgiu a possibilidade de que seus bens seriam enviados para a cidade de Osasco. Será que nunca mais ninguém ali veria a sua casa? O jardim, o colchão. A pia da cozinha. A horta. A rua. A janela. O quarto. Onde dormir naquele domingo? “Nesse alojamento onde eles jogaram bomba agora? Eu é que não vou dormir aí. Prefiro dormir na rua”, disse uma moradora. “Eu é que não fico aí com as crianças”, garante Janaína.
Um jovem magro, cabelo descolorido, camisa sem manga, chega junto para puxar conversa. Dar uma real. Olha a fumaça. “Tá ouvindo os grito das muié?”, pergunta. “Vou dizer uma coisa pro senhor: eu sou bandido. Sou mesmo, não nego. Mas esses daí”, aponta para a polícia, “esses daí são cruel. O que eles tão fazendo com as mulher e as crianças nóis num faz não.”
Nesse momento, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, em última instância o responsável pelas ações da Polícia Militar, posta em seu twitter um “feliz ano novo” chinês.