Recuperar o histórico do Dia
Internacional das Mulheres como parte da luta social, como inegável ponto de
intersecção entre a luta das trabalhadoras, do movimento socialista e da luta
feminista, evidencia o caráter político dessa comemoração e ao mesmo tempo, retoma historicamente o esforço
das militantes socialistas em construir uma dinâmica de organização e luta
específica das mulheres. A história evidencia a resistência – e mesmo o rechaço – de setores do movimento
socialista à perspectiva de organização das mulheres, alicerçada na recorrente
incompreensão do direito das mulheres à igualdade no mundo público (ao trabalho
e à participação política), contrastando com a realidade da sua presença no
trabalho agrícola e no proletariado industrial. Já fortemente marcado pela
divisão sexual do trabalho. Em diversos setores, a mão de obra feminina era
mesmo majoritária. Difícil seria pensar na organização da luta revolucionária
sem a participação das trabalhadoras.
No entanto, duas lógicas
aparentemente contraditórias se complementam – o impulso para a presença das
mulheres no mercado de trabalho e o reforço do seu lugar na família. A
exploração capitalista não destrói a estrutura familiar, como inicialmente
imaginaram os pensadores marxistas. E o movimento sindical predominantemente
masculino, apoiou e reforçou o papel da família operária e o lugar ideal das
mulheres como donas de casa e mães de família. A contradição entre
reivindicações de melhoria nas condições de trabalho muitas vezes se apoiou na
restrição aos direitos das mulheres ao trabalho, alimentando uma lógica de
organização do mercado de trabalho, legitimada durante décadas, que considerava
“natural” a demissão de mulheres ao se casarem, ou a existência de profissões
consideradas “adequadas” ao padrão de feminilidade imposto. São alguns
mecanismos de controle da exploração dos trabalhadores em seu conjunto, e das
mulheres em particular, que favorecem os trabalhadores do sexo masculino reforçando a desigualdade entre
mulheres e homens.
Após sua aprovação na Segunda
Conferência de Mulheres Socialistas em 1910, inspirada no Woman’s Day (Dia da Mulher) organizado pelas socialistas dos
Estados Unidos, as comemorações de um dia internacional das mulheres
organizadas pelas militantes socialissta ocorrem em dias diferentes a cada ano
nos distintos países. O livro nos relata a história dessas comemorações,
orientadas prioritariamente para reivindicação do direito de voto, sem a
definição de um dia específico para sua realização entre os anos 1911 e 1920.
Foram as manifestações das mulheres na Rússia, no dia 8 de março de 1917 (23 de
fevereiro segundo o antigo calendário russo) que motivaram a escolha do dia 8
de março como data comum para comemoração do Dia Internacional das Mulheres,
alguns anos depois. A confluência das comemorações do Dia Internacional das
Mulheres com a greve das operárias têxteis e a revolta das mulheres com a
escassez de alimentos foi o estopim da Revolução de Fevereiro de 1917 na
Rússia. O tento de 1920 de Kollontai, publicado neste livro, descreve a
mobilização das mulheres:
Em 1917, no
dia 8 de março (23 de fevereiro), no Dia das Mulheres Trabalhadoras, elas
saíram corajosamente às ruas de Petrogrado. As mulheres – algumas eram
trabalhadoras, outras mulheres de soldados –reivindicaram “Pão para nossos
filhos” e “Retorno dos nossos maridos das trincheiras”. Nesse momento decisivo,
o protesto das mulheres trabalhadoras era tão ameaçador que mesmo as forças de
seguranças tzaristas não ousaram tomar as medidas usuais contra as rebeldes e observavam
atônitas o mar turbulento da ira do povo. O Dia das Mulheres Trabalhadoras de
1917 tornou-se memorável na história. Nesse dia as mulheres russas ergueram a
tocha da revolução proletária e incendiaram todo o mundo. A revolução de
fevereiro se iniciou a partir desse dia.
Da mesma forma Trotski relata o
início da revolução em A história da
Revolução russa (Capítulo 7), enfatizando que as mobilizações das mulheres
passaram por cima do receio das direções partidárias que consideravam que as
condições para um movimento grevista não estavam dadas:
O dia 23 de fevereiro era o Dia
Internacional da Mulher. Os círculos social-democrata tencionavam festejá-lo
segundo as normas tradicionais: reuniões, discursos, manifestos. Na véspera
ainda ninguém poderia supor que o dia da Mulher pudesse inaugurar a Revolução.
Nenhuma organização preconizara greves para aquele dia (...) Tal foi a linha de
conduta preconizada pelo Comitê, nas vésperas do dia 23, e parecia ter sido
aceita por todos. No dia seguinte, pela manhã, apesar de todas as
determinações, as operárias têxteis de diversas fábricas abandonaram o trabalho
e enviaram delegadas aos metalúrgicos, solicitando-lhes que apoiassem a greve.
Foi “contra a vontade”, escreve Kayurov, que os bolcheviques entraram na greve,
secundados pelos mencheviques e socialistas-revolucionários. Vistos tratar-se
de uma greve de massas, não havia outro remédio senão fazer com que todos
descessem à ruae tomar a frente do movimento (...) ninguém, absolutamente
ninguém –podemos afirmar categoricamente baseando-se em todos os documentos
consultados – supunha que o dia 23 de fevereiro marcaria o início de um assalto
decisivo contra o absolutismo.
A mobilização das mulheres
respondia a mais de uma motivação. E detonava a insatisfação exacerbada pelo
longo período de opressão e guerra. Como já mencionara Kollontai, para a
mobilização das mulheres nas ruas confluíram as grevistas do setor têxtil, as
imensas filas para a distribuição de pão, as mulheres familiares dos soldados
do exército – chamadas de soldatiki –
explodindo uma revolta acumulada contra a repressão do regime tzarista
intensificada pela guerra. A revolta se estendeu por vários dias, ganhando,
cada vez mais um caráter de greve geral e de luta política. O relato de Trotski
pontua com detalhes a iniciativa das mulheres:
É evidente pois que a Revolução de
Fevereiro foi iniciada pelos elementos de base, que ultrapassaram a
resistências de suas próprias organizações revolucionárias, e que esta
iniciativa foi tomada espontaneamente pela camada proletária mais explorada e
oprimida que as demais – as operárias da indústria têxtil, entre as quais,
deve-se supor, estavam incluídas numerosas mulheres de soldados. O impulso
decisivo originou-se das intermináveis esperas nas portas das padarias. O número
de grevistas, mulheres e homens, orçou, neste dia, por volta de 90 mil. (...)
Uma multidão de mulheres, nem todas operárias, dirigiu-se à Duma Municipal,
pedindo pão. Era o mesmo que pedir água a uma pedra. Em outras partes da cidade
foram desfraldadas bandeiras vermelhas cujas inscrições atestavam que os
trabalhadores exigiam pão, mas que também não queriam mais a autocracia nem a
guerra. O Dia da Mulher foi bem sucedido, cheio de entusiasmo e sem vítimas.
Anoitecera e nada revelava ainda o que esse dia trazia em suas entranhas.
Foi para relembrar a ação das
mulheres na história da Revolução Russa que o Dia Internacional das Mulheres
passou a ser comemorada de forma unificada no dia 8 de março. A decisão de
unificação da data foi tomada na Conferência de Mulheres Comunistas,
coincidindo com o Congresso da Terceira Internacional, realizado em Moscou, em
1921. Parte dessa história, entretanto, ficou esquecida durante vários anos.
(...)
Quando novamente ganharam fôlego
as comemorações, após os anos 1960, muitas versões se contaram, se confundiram,
se criaram e os acontecimentos e motivações que deram origem ao Dia
Internacional das Mulheres, ao 8 de Março ficaram submersos. Quantas de nós já
não ouvimos, e repetimos, que a origem do 8 de Março está vinculada a um
incêndio que causou a morte de uma centena de operárias...! Um incêndio que de
fato existiu, acontecimento trágico e marcante nos Estados Unidos, mas cuja
história se vincula à proposição de um dia de luta das mulheres e, tampouco, à
definição da data de sua comemoração. (...)
Ao se completar um século desde
que as mulheres socialistas reunidas em Copenhague aprovaram a proposta do Dia
internacional da Mulheres, a recuperação histórica do significado dessa data é
uma contribuição importante para a reflexão sobre o que é constitutivo na luta
feminista: a afirmação, cada vez mais, da autonomia e soberania das mulheres e
de que a igualdade entre os sexos tem que ser parte fundamental de todos os
processos de transformação. Esse é o lugar do 8 de Março na longa jornada das
mulheres: reafirmar que sem socialismo não há feminismo, sem feminismo não há
socialismo.
Fonte: As Origens e a Comemoração
do Dia Internacional das Mulheres de Ana Isabel Álvares González. 1ª ed. São
Paulo: Expressão Popular: SOF – Sempreviva Organização Feminista, 2010.
Texto extraído de parte da
apresentação do livro por Nalu Faria, Coordenadora do SOF – Sempreviva
Organização Feminista
Pesquisa: Ana Paula Perciano
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